terça-feira, 30 de novembro de 2010

No olho do furacão


A estante estava propositalmente escondida num canto, ainda na embalagem da loja. Ela havia se prometido mandar fixá-la à parede antes que Ele a descobrisse. Ele era do tipo prestativo, que gostava de fazer as coisas com as próprias mãos – suas e de quem aparecesse no caminho.


Acontece que Ele acordou no domingo, viu o embrulho e, resolutamente, anunciou que assumiria a empreitada. De nada adiantaram os argumentos para deixar aquilo para lá e aproveitar o dia, ele já trabalhava tanto...

“ Que nada, isso para mim é terapia!” – aquilo, em bom familiês significava “cancelem os compromissos que a jornada será longa”. Prepararam-se para o pior : muita gente, à beira de um ataque de nervos, ia carecer de terapia até o fim do dia.

Preparação: uma filha devia buscar o tamborete, a outra, a trena e a terceira, o lápis para marcação dos furos. E que Ela não saísse do lugar, para garantir visualmente que as marcas estavam corretas. Falando nisso, alguém tinha visto o nível dágua?

Meia hora depois, a parede parecia um tabuleiro de War, tantos eram os pontos assinalados. Onde estava a furadeira? Cadê o fio de extensão? Quem guardou os óculos de proteção da última vez? Foi então que Ele descobriu que faltavam buchas e parafusos. Não se apertou: que a filha mais velha fosse tomar emprestado ao vizinho. Enquanto esperavam, que tal a outra pegar uma cerveja bem gelada? Cerveja combina com tira-gosto, claro, e lá foi Ela providenciar Seu desejo.

Buchas, parafusos, cerveja e tira-gosto a postos - hora de reiniciar o trabalho. Que uma das meninas ficasse por perto, para o caso de Ele precisar de alguma coisa. Que a outra posicionasse a pazinha logo embaixo de cada furo para aparar o pó, que a terceira buscasse a lata de lixo... E que Ela escolhesse um CD para alegrar o ambiente e celebrar aquele momento especial de trabalho em família.

Tentando entender o esquema da montagem, Ele virou-se abruptamente e o fio da extensão enrolou no tamborete. Em desequilíbrio, Ele caiu sobre o vaso de Murano, herdado da avó dela. Em efeito dominó, o vaso derrubou o aquário, deitando peixes e água sobre o tapete arraiolo. Enquanto todos se mobilizaram para salvar os peixinhos, Ela imaginava como tirar o cheiro de peixaria do tapete novo. Na tentativa de salvamento, Ele cortou o dedo nos cacos da relíquia e a cortina branca de percal, recém chegada da lavanderia, Lhe pareceu a gaze perfeita para estancar o sangue. Ele soltou um palavrão ao ver o tamanho do corte e Ela quis saber se aquela era a linguagem usada no curso domiciliar de formação de delinqüentes juvenis.

Ao fim do dia, estante e prateleiras na parede salpicada de marcas de dedos, o ambiente parecia devastado por um furacão. No meio dos destroços, Ele admirou o trabalho realizado e, em estado de graça, comentou: “E tem gente que pagaria um dinheirão para mandar instalar esta estante!”

Da próxima vez que Ele decidir assumir alguma tarefa doméstica, Ela jura que, nem que chova canivete, vai para Nova Orleans conferir in loco a devastação do Katrina sobre a cidade.

Ela duvida muito que seja pior do que o estado do escritório naquele momento.


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Um comentário:

Sueli Maia (Mai) disse...

tragicômico, Paula.

Mas a logística estava indo bem até que o fio complicou tudo.

Muito, muito bom!

beijos