terça-feira, 1 de março de 2011

Águas de cabeceira




ÁGUAS DE CABECEIRA
Márcio Ares *

Era Maria, a mãe. Aparecida. Da filha, um nome que não se lembra, por certo Maria.
O casebre avizinhava um pequeno rio, quase sem nome, esquecido de mundo, quase de gente.
Talvez se chamasse cana brava, talvez Santa Maria.
Foram ao vizinho, do outro lado, ali não muito longe, depois do corguinho.
Carecia limpar o arroz no pilão emprestado que era, pobre a vida.
Com a força do braço, pilão, peneira, socador e destreza, no afastado de possibilidades, cumpria-se o difícil emaranhado da vida.
Terminada a tarefa, voltavam uma hora qualquer, de certo não de manhã.
Das três crianças, uma segura no braço; uma caminhando seguro; a outra segura de dentro da barriga.
A peneira-de-abano cobria o arroz na bacia.
Nem tinha mesmo chovido, mas o dia vinha teimoso de chuvisco.

Na beira d'água, depois da curva do rio, pousou as crianças. A maiorzinha mantinha a vigília.
Atravessou primeiro o arroz e as vasilhas, com os cuidados que aquele tempo exigia.
Voltou para buscar o casalzinho de meninos.
Agarrada às mãos da mãe, a maiorzinha acompanhava-lhe os passos para a travessia.
O menor de todos, seguia nos braços, agarrado ao pescoço materno, esganchado sobre a curva da
barriga, onde o futuro, de meia dúzia de meses, parece que dormia.
No meio do vau, a pouca água virou grande rio. Uma cabeçada veio de
repente. Tanta água era sem aviso. A mãe, tomada ao pouco saber que
lhe cabia, rodou um certo tanto, apertando com força os filhos.

Agarrou, no desespero, um pedaço de barranco, galha, ramo, o que se via e não se via.
A vida ficou em suspenso, num instante quase não percebido.
Na outra mão a mão vazia. A maiorzinha escapulira.
Melhor inventar, nessa história, um certo alívio. A mãe, arrastada pelas águas, e duas crianças ainda existiam.
Estavam ali, de algum modo, vivas. Arrastadas pelas águas, jogadas, meio que por milagre, na
improvável margem. Perdida a cria, sabia agora a dor mais doída.
Da garganta saíra, tímido, o primeiro grito.
A distância, pouca, donde se dando um grito se ouvia, trouxe, não se sabe com que força e voz, o vizinho. Com ele, o intento de alguma valia, de algum socorro possível que, no fim sem fim da boa humanidade, acabou que de nada serviu.

Sobrara José, que dos braços e da sorte se valera, ou quem sabe de algum dó divino.
E ficou Perpétua o nome que se daria à menina ainda não nascida.
De mãe que nunca tivera muito, só mais ou menos se sabia algum conforto, qualquer pequena alegria. Entendia só mesmo do simples da vida.
Ficou, parece, um tanto mais incerta, meio que sem norte, um pouco mais sofrida.

Ao longo do seguinte dia, um pescador, distante do acontecido, achou, primeiro os cabelos compridos à beira do rio. A meninazinha, tão bonita, um corpo sem vida. Soubera do povo reunido, procurando pela
noite, pelo resto do dia, a menina entregue às águas, na culpada lembrança das mãos da mãe que sofria o desgosto, inseguro, da vida.

Era Maria, a mãe. Aparecida. Da filha, um nome que não se lembra, por certo Maria.

http://www.marcioares.blogspot.com/

Márcio Ares é mineiro, filósofo, compositor, poeta, fotógrafo, e policial militar nas horas vagas. Ganhou vários prêmios de literatura por causa do passarinho que carrega no peito e que faz ele trinar coisas líricas e profundas toda vez que abre o bico. Adora Maria Betânia, já viajou praticamente o mundo todo e assistiu ao espetáculo "Mulheres de Holanda" 34 vezes. Tem uma dificuldade antológica para assuntos internáuticos, mas é um desses amigos com quem se pode contar a qualquer tempo. Tem dias que só ele pra desenhar o riso no meu rosto.
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Um comentário:

Anônimo disse...

lindo demais MP!

visita obrigatória na nossa tertúlia, viu?

aonde que esse poeta estava escondido gente?