quinta-feira, 8 de março de 2012

Me chama de lagartixa



Na celeuma entre criacionistas e evolucionistas ela não mete o bedelho. Nem de Eva, nem do macaco - ela sabe que seus ancestrais diretos são as lagartixas e, por conseguinte, os dinossauros, de quem lagartixas são a versão bonsai. Como a lagartixa, ela não tem o rabo preso e, muitas vezes, usa do mimetismo para passar desapercebida. Mas é no quesito amoroso que seu coração DNA rabo de lagartixa se manifesta em plenitude: tantas vezes decepado quantas vezes autorregenerado.


Férias na praia, primeiro namorado, ambos com 14 anos, ela uns 5 cm mais alta. Em pleno estirão da puberdade, ele cresceu uns 15 cm enquanto namoravam. Um dia, seca e inexplicavelmente, ele terminou o namoro e a lagartixa enfiou o primeiro rabo-cotó entre as pernas. Anos mais tarde, num encontro casual, o moço revelou que quem tinha rompido com ela fora o irmão, gêmeo idêntico. Ela não perguntou o motivo: não devia estar mais à altura deles.

Escola nova, QI de ameba em Física. Tão péssima que a escola indicou um instrutor para acompanhar seus estudos. O rapaz, estudante de engenharia, tanto esforçou que acabou rolando uma química. Foram vários foras seqüenciais em que ele terminava com ela para cair nos braços de sua colega . E vice versa. Um dia, num lampejo de lucidez, fizeram as duas um pacto de não aceitar mais tamanha indecisão. De herança, ficou a grande amizade entre as duas lagartixas cotós.

Conheceu R. numa festa no clube. Ele, estudante de Direito, já tinha a lábia dos catedráticos. Eram completamente diferentes: ele, refinado, elegante, apegado ao material; ela, meio riponga, adepta do paz e amor. O mimetismo da espécie ancestral fez com que ela adaptasse ao seu estilo. Pena que R. não conseguiu se adaptar ao estilo monogâmico. Foram anos de foras, seguidos de lágrimas de crocodilo de arrependimento. Ela subia pelas paredes, mas compreendia a força dos hormônios masculinos e o aceitava de volta. Um dia, a gota dágua: rápida como uma lagartixa, deixou na lata de lixo do banheiro de um restaurante um pé de um sapato de grife dele (couro de crocodilo, claro!) e o restinho do seu amor. Ele saiu do local mancando. Seu coração manco enfim saltitava.

Mais tarde conheceu outro R., urologista. Paixão arrebatadora, daquelas bem fulminantes. Ela, nas nuvens. Ele, há poucos meses do casamento. Ela não tinha sangue de barata e achou que tinha usado a última regeneração do rabo coração quando ele não teve coragem de romper com o compromisso assumido.

Foi como lagartixa profissional que conheceu A. numa escola de idiomas. Ela, a professora; ele, o aluno bonitão. Achou que enfim tinha encontrado a lagartixa gêmea e mergulhou de cabeça. Uma crise de meia idade interrompeu seu sonho de jacaré. Joga na parede, chama de lagartixa, mas não faz isso com ela. Vinte anos e muitos rabos regenerados depois, olha ela de novo no mercado dos répteis, dessa vez tendo que reaprender o beabá dos animais de sangue frio.

O mundo fora do casamento parecia mais ameaçador do que era de fato. Encontrou gatos, gaviões, mas também mosquitos, lagartixas e muito sorriso de lagarto pelo caminho. A princípio pensou em mudar radicalmente, amputar rabo e DNA em um mesmo golpe. Mas segue em frente, cada vez mais tranquila. Aposta que em algum ponto da Ásia ou da África lagartixas são animais sagrados, divindades íntimas cuja presença anuncia a paz de espírito. É feliz. Agora sabe que quem nasceu pra lagartixa jamais chega a jacaré. E que perder o rabo significa quebrar por vontade própria uma parte do corpo. A isso chamam autonomia.

Um comentário:

Fabrício César Franco disse...

Precisa dizer que gostei? Pois, gostei. E ainda consegui até pensar em trilha sonora (década de 80, obrigado pela sua maravilhosa gênese de tanta banda boa) para cada um dos momentos. Crônica com jeito de filme.