Para muitos, a crônica é a prima pobre da poesia. Uma elege temas universais e atemporais, enquanto a outra enfoca o cotidiano de prazo de validade curto. De fato, a maioria das crônicas fica rançosa com o passar do tempo. Poucas têm vida média de carbono, resistindo ao espaço e intempéries naturais. A crônica bem elaborada é cápsula do tempo, registro histórico pela terceira visão – nem vencedor, nem vencido – do impacto e relevância que o fato trivial teve sobre o autor. Há quarenta anos, em meados dos anos sessenta, Paulo Mendes Campos escreveu “Coisas abomináveis”, um relato de “crimes contra a criatura humana na vida moderna”. A abordagem, ainda atual, faz-me concluir que alguns cotidianos são crônicos.
No texto, o cronista mineiro arrolou, entre as coisas que abominava, atraso de avião, preencher aquele formulário hermético e algébrico da Divisão do Imposto de Renda, os maus serviços da Companhia Telefônica ( as companhias, hoje muitas, padronizaram o atendimento precário ao cliente). No quesito saúde, registrou os rumores de epidemia de varíola ( com a erradicação da doença, os boatos foram parar nas freguesias da febre amarela, AIDS, gripe asiática) e enfarte de pessoa da nossa idade ( a má notícia é que entrei para o time da “nossa idade”). Nas relações humanas, o autor explicitou a insatisfação com sujeito falso importante, mulher feia falando de bonita, moça que não sabe que mulher só pode falar um palavrão por semana. Não é atualíssimo?
Ouso continuar a idéia do cronista. Uma amostra de coisas detestáveis contemporâneas poderia incluir o voyerismo tácito que faz com que o assunto hit em todas as rodas seja as peripécias do BB8; gente que fala aos gritos no celular, expondo ao mundo sua privacidade; axé, funk e demais variantes dessa batida retumbante e chata; salários irreais de jogador de futebol; massificação do pensamento; fama passageira e sem mérito; consumismo desenfreado; relacionamentos humanos descartáveis; vendedor solícito demais ou que te ignora; caça à vaga no estacionamento lotado do shopping; filas em bancos; lista de espera em restaurantes; recepções faraônicas de gosto duvidoso, dignas de novo rico; padrões maleáveis de moral e conduta socialmente aceitos; fanatismo e intolerância religiosos; impunidade; rótulos e categorizações; imprensa marrom; vírus cibernético; correio eletrônico lotado de spam; truculência urbana; imediatismo social; bêbado bonzinho e grudento; carga tributária excessiva; estradas esburacadas; taxista que puxa assunto depois de você ter dado todos os sinais que está entretido em colóquio consigo mesmo; política de cotas para negros em universidades públicas ( atacar os sintomas não atinge a causa da doença); governo corrupto, inoperante e populista; publicidade grotescamente inserida no nosso programa favorito; farras do boi e do cartão; a efemeridade da tecnologia; CPIs que acabam em pizza; a mercantilização da saúde privada e o pouco caso com a saúde pública;...
Fale a verdade: a gente merece?
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