segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Do pouco o muito que se diz

( para Paula Alvim)



Biribiri, Diamantina - foto de Márcio Ares, 1999



Outro dia disse a uma grande amiga, como tantas outras vezes a tantas
outras pessoas, ao longo da minha vida: "seja quente, ou seja frio; se
for morno eu te vomito”. Acrescentei, ainda, como sempre: “é bíblico!”
Mas ela, claro, perspicaz como sempre (filha da puta!!!!!!), tinha que
questionar a origem do negócio!!!! Oh, menininha difícil, gente!!!!

Fiquei eu sem base. O mundo acabou. É que o amor pelas coisas que a
gente gosta às vezes até nos deixa cegos para os detalhes que o situem
devidamente.

Por bem ou por mal, pus-me a procurar. E graças a Deus - ou seria aos
homens? – paradoxalmente descobri o divino entre as bandas largas do
mundo que, como dizem, levam mais facilmente ao inferno que ao
paraíso. Só então comecei a gostar desse trem de ir e vir na busca
das coisas que aquietam o espírito. Dei de achar que escreveria uma
crônica. Ri por mim e pela minha amiga. Ri pelo inusitado da coisa. Ri
porque tinha alegria.

E "eis o Homem", dizendo, por meio da carta à Igreja de Laudicéia, a
última das cartas às sete igrejas ditadas por Jesus a João, aquele do
Apocalipse, a tal frase. Descobri que tinha mesmo que ter alguma coisa
a ver com o fim do mundo da hora em que ela me perguntou sobre a
gênese da coisa, o momento fatídico.

Muito se tem falado a respeito dessas cartas, alguns comentam que
existe aí uma seqüência em termo de tempos da Igreja de Jesus; outros
comentam que é pura invenção e razoável poesia. E outros simplesmente
põem a gente em dificuldade fazendo pergunta difícil, desencontrada do
costume de silêncios, ignorância ou respeito ao que se quer
inquestionável, sobre o qual perguntar é quase que um feito ilícito.

Eis a narração constante do décimo quinto versículo do capítulo 3:
"Conheço as tuas obras, que nem és frio nem quente; oxalá foras frio
ou quente! Assim, porque és morno, e não és quente nem frio,
vomitar-te-ei da minha boca."

E aí está a explicação do que pus pra fora de mim, sem temer a
escuridão de perguntas que nos tirem dos trilhos.
E aqui está a prova de que os amigos nos fazem caminhar rumo a
sabedoria, mesmo quando a razão de tudo se faz a partir de algo tão
cotidiano quanto o que dizemos aos amigos em momentos de pouca
cerimônia, sem muito aviso e nenhum esforço intelectual à vista.

Contei tudo isso a ela, a menininha difícil. Fi-lo por email, esse
caminho de palavra que atropela a nostalgia dos tempos de papel
pautado, escrita a mão e luz do dia.
Minha amiga então responde: “Uai, se eu soubesse que cada dúvida minha
poderia virar uma crônica deste quilate, eu passaria a vida inventando
perguntas...” Disse ainda que tinha gostado de ler a resposta e de
saber que o meu lema era ser quente ou frio, nunca morno,
desarranjando assim o meu gelo e meu fogo às vezes tão extremamente
mantidos.

De tudo isso eu só entendi carinho. Fiquei mais quente na crença dos
elogios. Fiquei mais gente, mais inteligente pras coisas de Deus,
mais pronto para as coisas grandes e pequenininhas. O que era amor
ficou para sempre um olhar que sabe, diz e pressente.

Dia desses hei de perguntar a essa minha amiga sobre o “tempo para
cada propósito debaixo desse céu”. E quem sabe eu descubra existir
assim tão plena, além do tamanho do meu sentimento por eclesiásticos
poemas, alguma verdade terrena como essa que há tempos me acalenta.

Ou terá sido mesmo isso o que ela me disse?



 
Márcio Ares é mineiro, filósofo, compositor, poeta, fotógrafo,  e policial militar nas horas vagas. Ganhou vários prêmios de literatura por causa do passarinho que carrega no peito e que faz ele trinar coisas líricas e profundas toda vez que abre o bico. Já viajou praticamente o mundo todo e  assistiu ao espetáculo "Mulheres de Holanda" 34 vezes. Tem uma dificuldade antológica para assuntos internáuticos, mas conhece muita gente interessante, inclusive o Carlos Nunes, grande ator, produtor e roteirista mineiro, a quem me apresentou ( e quem eu era louca pra conhecer). Junto com a Cynthia, me faz rir muito. Está, pois, perdoado por me chamar de menininha difícil ( o filha da puta, ele resolve com a minha mãe quando encontrá-la no céu  - pressinto que hão de ser bons amigos)

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Um comentário:

Carla Farinazzi disse...

Belo texto, Maria Paula.

Não tem nada pior que coisas/pessoas/situações mornas!

Beijo

Carla