terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Conversa de pescador




Tem horas que eu penso que Deus tem um pesador de ânimos pra mandar um alento quando vê que o andor está pesado demais. Foi assim comigo no fim dos anos 80. Meu par de internato rural era Elisa e a cidade, Padre Paraíso, encravada no Vale do Jequitinhonha. Eu não sei se você sabe que o internato rural é uma cadeira do último ano da Faculdade de Medicina, em que a gente passa três meses numa comunidade carente, praticando o aprendido na escola. Umas duas semanas antes da viagem, meu pai adoeceu de doença grave, foi operado e não dava mais pra eu enfurnar a quase 600 quilômetros de casa. Com muito tento, que os alojamentos perto da capital eram concorridíssimos, consegui que Dona Zica, tia do Elton, me recebesse em sua casa. Assim fui parar em Bom Despacho. Assim peguei intimidade com a família do Elton, meu colega de turma.


Eles adoravam pescar. Eu nem sabia pegar no molinete. Mas fui aprendendo e tomando gosto. E quase toda tardinha, menos nas noites de plantão na Santa Casa, Dona Zica passava no posto de saúde do Campo Grande, onde eu trabalhava, pra gente ir pescar. Nem sempre o Elton ia, porque ele era piolho de bloco cirúrgico. Não me espanta ele ter virado um anestesista tão fera. Mas Dona Zica não falhava. Nem os amigos dela e o resto da família. Tinha dia que vinha muito peixe, tinha dia que não dava nada. Eu é que nunca perdi a caminhada: aquele jeito manso de ir rodeando, rodeando, gastando prosa, me enredava tanto que eu sentia a maior falta quando ia pra casa visitar o pai. De vez em quando os causos eram escabrosos demais e eu ficava na dúvida se acreditava ou não. Dona Zica me chamava à razão: bom pescador aumenta, mas não inventa.

Até que um dia aconteceu comigo. Eu nem gosto de contar muito, gente pode duvidar, mas o pessoal que estava comigo está todo vivo, menos a Dona Zica, que Deus a tenha, pra confirmar a história. Eram o Elton, seu Zaqueu, Teodoro, Dona Zica e eu. Teve uma hora, já de noitinha, que as iscas acabaram e seu Zaqueu deu na veneta de pescar com traíra. E não sei se você sabe que traíra a gente mata com facão. Pois bem na horinha que seu Zaqueu levantou o facão para matar a bicha, o Elton enfiou o nariz onde não era chamado. Esqueci de contar que ele era muito do narigudo. Aí já viu: na escuridão, lá se foi o nariz do pobre. Foi um deus nos acuda. Procura que procura, nada de achar o danado. A sorte é que o Teodoro não largava a latinha de rapé por nada neste mundo e a gente esparramou o pó no entorno. Não deu outra: o nariz perdido danou a espirrar e conseguimos localizar o fujão. Nessa hora seu Zaqueu me deu uma bisnaga de durepóxi, que ele guardava pra quando o barco fazia água. Colei o nariz no rosto do Elton e fiz um curativo meia boca, o melhor que consegui. Resolvemos voltar que a pescaria já tinha perdido a graça mesmo. No caminho o Elton começou a perder o fôlego e ficar branco que nem cera. Fomos direto pra Santa Casa. Lá no claro eu entendi o problema: na correria, colei o nariz do infeliz ao contrário, de ponta cabeça. Ainda bem que, além de narigudo, o Elton era danado de bocudo: pela boca ele foi pegando ar até o médico consertar o meu mal feito. Já pensou? Era capaz de não me darem o diploma se ele tivesse morrido afogado...

Pois então, foi assim. Tem também o caso do bagre sentimental, mas esse eu deixo pra uma outra hora.

2 comentários:

Unknown disse...

Paulinhamiga

Pela boca morre o peixe diz a sabedoria popular de cá, desta margem do nosso oceano comum. E penso que o ditado também se usa por essa Terra da Vera Cruz. Aliás, o Português tanto é de Lisboa, como de Brasíla, tanto é de Luanda, como de Goa.

Estórias de pescadores são milhentas; contá-las como tu o fazes, são poucas. Eu, que tenho ganho (tão honestamente quanto possível) a vida a escrever, delicio-me com a tua prosa.

Jornalista ancião, que tenta ser jovem..., e dizem que escritor, dizem..., aos 69 aninhos de idade, tenho de gabar o que escreves e, sobretudo, como escreves. Parabéns.

Na Minha Travessa tenho um novo PASSATEMPO/CONCURSO com prémios: livros e CDs de música portuguesa. Se quiseres passar por lá, não te mordo, juro.

Qjs = queijinhos = beijinhos

Anônimo disse...

adorei ler na tertúlia e aqui também!

vamos ver se a gente leva o olavo romano pra tertúlia também!

beijão.