Perguntou, como quem não quer nada, quem dormira na cama deles durante Sua ausência. Com olhar inocente, ele apontou para Luna, a boxer da família. Ela e a outra se estranhavam há muito, numa competição tácita pelo papel de prima dona. Ela nada tinha contra a boxer, exceto a devoção exagerada a Seu marido e a indisfarçável implicância com Ela. Pular em cima do Seu uniforme branco com as patas sujas; destruir diariamente o jornal jogado na garagem; rosnar quando A via abraçada ao marido; fugir para a rua quando Ela abria o portão da garagem eram rotina nos três anos de coabitação. Ela sempre levou na esportiva. Assim são as mulheres: aprenderam com Oscar Wilde ( e suas avós) que a vida é importante demais para ser levada a ferro, fogo e ressentimentos.
Luna, a outra, é irascível e enfrenta até o companheiro. Quando os cães brigam e o marido percebe-A por perto, não perde a chance de consolar Zack: “Liga não, amigão. Elas são todas iguais.” Ela poderia se irar por ser comparada com uma cachorra, mas mulheres têm natureza pacífica e obstinada em fazer do lar uma faixa de Gaza.
Um dia Ela vacilou: num momento de descontrole, queixou-se de Luna ao marido. Ele ouviu pacientemente a ladainha e, previsivelmente, tomou as dores da cachorra: “Se você me desse metade da atenção que Luna me dá, eu seria um homem realizado” ( para algumas mulheres, só lobotomia resolve!).
Ela calou, escandalizada. Convive-se vinte anos com alguém, faz-se das tripas coração para ser esteio emocional; equilibra-se na corda bamba para conciliar os múltiplos papéis de mulher, mãe, profissional, esposa e de repente descobre-se que tudo que o outro desejava era uma cadela que lhe lambesse o rosto e saltitasse ao fim do dia.
Enfiou o rabo entre as pernas: em alguma coisa muito importante Ela falhara para ser comparada desfavoravelmente a uma boxer briguenta. Assim são as mulheres: andam de mãos dadas com a culpa, em dívida permanente com o Universo. Combativa, Ela tenta se acalmar: tem seus méritos, ora bolas! Se a outra não fala demais, Ela não solta pelo, não rosna e nem late. A outra aceita usar coleira, mas ninguém precisa comprar ração e trocar a água dEla. Ela não dá aquela lambida afogada em saliva, mas faz várias outras coisas que, garante, a outra não faz.
Ela esmerou na atenção, caprichou no bom trato, rosnou, abanou rabinho. Dois meses depois perguntou, meio assim na brincadeira: “E aí? Superei a Luna?” O silêncio pesado foi resposta eloquente e doeu fundo, fundo... uma verdadeira cachorrada. Assim são as mulheres: perigosamente vingativas - quando as alternativas de harmonia se esgotam, que fique claro.
Dizem que a separação, litigiosa, abriu precedência e deu trabalho pra cachorro. E que ele hoje sente muita falta dEla... especialmente nos dias de vacina e tosa.
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( crônica antiga, escrita em fevereiro de 2008 - lembrei-me dela ontem ao falar com meu amigo Roberto Lima, jornalista, escritor, editor do blog Primeira Pessoa, que estava todo jururu com a morte de Jade, sua cachorra super amada, apesar do difícil convívio diário.
Cachorro é como grande amor, Roberto: só não sofre por ele e sente falta quem nunca teve )
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Um comentário:
maria paula,
cunhei a frase dando conta de que, na minha casa, "bom mesmo é ser cachorro"... pras cadelas, sempre sobrou afeto, cuidados e mais, muito mais... pra quem paga as contas, não necessariamente.
chego à conclusão de que é por puro merecimento delas.. é o quero crer.
gostei do seu texto. divertido, leve, e contando uma história do princípio ao fim. essa é a maior dificuldade dos que se arriscam em escrevinhações, alinhavar texto e contexto.
e, ó: obrigado pelo carinho. costumo dizer que tenho os melhores amigos que o afeto pode comprar.
abração do
r.
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